Dramaneer

set

Desde seu início, o cinema foi uma arte. Ele pode ser visto como uma arte “fútil” por ser a mais jovem entre as artes, nascida de uma técnica mecânica de reprodução da realidade, e geralmente tratado como simples entretenimento pelo grande público. O cinema também aparenta ser “fácil” por se apresentar muitas vezes sob formas melodramáticas, eróticas ou violentas. Mas podemos realmente considerar o cinema como uma linguagem dotada da maleabilidade e simbolismo que essa noção implica?

Uma linguagem e um ser

Os primeiros filmes pertenciam à “idade das onomatopeias” visuais e sonoras, com signos ainda ingênuos. Aos poucos, esses elementos foram se organizando de forma mais elaborada, adquirindo um certo convencionalismo. Algumas leituras de Eu, Tu, Ele, Ela (1974) atribuem diferentes papéis não apenas aos personagens — como a protagonista de Akerman, o motorista de caminhão e a ex-namorada — mas também ao próprio espectador. Akerman sugere uma leitura ambígua, e insistir em uma interpretação literal pode empobrecer o filme. Para explorar essa obra, é necessário abandonar o explicativo e abraçar uma multiplicidade de leituras, sem limites, em constante estado de fluxo. O filme, então, deixa de ser uma obra concluída, tornando-se algo que se completa infinitamente a cada nova visualização.

Essa constatação aproxima a linguagem cinematográfica da poética, onde as palavras da linguagem comum ganham múltiplos significados. Pensar na linguagem fílmica é reconhecer que ela vai além de ser um simples veículo de sentimentos ou ideias. No entanto, muitos filmes, embora eficazes em sua comunicação, carecem de profundidade estética e artística, pois não transcendem em termos de linguagem cinematográfica.

O enredo e a estética

Focar apenas no enredo de um filme como Eu, Tu, Ele, Ela pouco acrescenta à sua compreensão. O enredo é simples: uma jovem passa a maior parte do tempo sozinha em um quarto, seminua, comendo açúcar e escrevendo uma carta. Em seguida, ela pega um elevador com um caminhoneiro, com quem tem um encontro sexual. Depois, visita sua ex-namorada, que aceita passar a noite com ela, mas pede que vá embora no dia seguinte. E isso é tudo.

Tentar desvendar o que exatamente Akerman quer dizer é inútil. O filme não oferece uma tese clara, mas transforma a aparente banalidade das ações, os planos longos e a ausência de uma narrativa tradicional em uma densa riqueza de significado.

Realidade figurativa

A imagem cinematográfica é, antes de tudo, realista, dotada de todas as aparências da realidade. Ela evoca no espectador um sentimento de “real”, muitas vezes forte o suficiente para suscitar a crença na existência objetiva do que aparece na tela. Em Eu, Tu, Ele, Ela, o espectador se torna parte do processo criativo, participando ativamente através de sua própria visualização. Isso é possível devido à ambiguidade do filme, que permite ao público entrar na obra de forma subjetiva.

Akerman não sente a necessidade de explicar suas ações, pois muitas delas são, por natureza, inexplicáveis. Ela simplesmente demonstra o poder das imagens fílmicas, que absorvem as diversas interpretações possíveis de seu trabalho.

Os elementos sensuais do filme são poderosos e merecem atenção. A nudez na primeira parte, embora não literal, tem sua carga simbólica; a segunda parte traz um incidente sexual apenas descrito, não mostrado. Finalmente, o encontro sexual entre as duas jovens mulheres, embora físico, mantém um tom formal.

Ao assistir ao filme pela primeira vez, é essencial manter o olhar atento e evitar suposições, que são inimigas da ambiguidade — um verdadeiro desafio para o espectador.

Eu, Tu, Ele, Ela não oferece uma leitura fácil, mas valida a multiplicidade de interpretações que o contexto permite.

Sua originalidade vem de seu valor figurativo e evocativo, de sua capacidade única de mostrar o invisível através do visível, de visualizar o pensamento enquanto simultaneamente vivenciado. Akerman consegue fundir o sonho com a realidade, a volatilidade imaginativa com a solidez documental.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

MARTIN, M. A linguagem cinematográfica. São Paulo: Brasiliense, 2003.

#set #chantalakerman

Notícias de Casa (1976) é, antes de tudo, um documento visual e etnográfico da Nova York dos anos 70.

O filme não segue uma narrativa convencional, mas Akerman consegue expressar seus ideais estéticos de forma genuína, explorando a geografia da cidade dentro de um tempo único. As luzes sombrias criam uma atmosfera de normalidade sobre a vida urbana, pulsante e subversiva, da América daquele período.

O filme é uma das críticas mais impactantes ao processo criativo. Ele retrata a potencial perda de conforto, de humanidade, e o mergulho na imensidão viva de uma cidade que é essencial para compreender a faísca criativa de Akerman.

A obra sugere que essa perda de humanidade, ainda que negativa, é transitória. Embora o distanciamento e a determinação possam parecer quase egoístas na busca por um talento artístico surpreendente, a jornada é mais circular do que linear. Ou seja, a necessidade de lidar com a autodepreciação acaba sendo anulada pelo sucesso artístico alcançado.

O pintor Edward Hopper disse uma vez: “Talvez eu não seja muito humano – o que eu queria fazer era pintar a luz do sol ao lado de uma casa.” Akerman canaliza essa ideia e a responde de maneira implícita, através de uma justaposição natural. Ela se mudou para Nova York no início dos anos 70 para estudar cinema, mas antes disso trabalhou em empregos mal remunerados, incluindo a venda de ingressos em um cinema pornô, para financiar seu trabalho.

Akerman argumenta que é humano documentar aspectos da vida urbana, mas também defende que esse gesto só ganha valor quando há uma reflexão pessoal. O filme está intimamente ligado à sua vida, com a presença da voz de sua mãe lendo cartas genuínas enviadas à jovem diretora. Isso confere uma camada humanista à obra, mas, ao se comparar com seus primeiros sucessos, fica claro que Akerman também se confronta com sua própria luta criativa e a crescente distância emocional em suas palavras.

O espectador nunca ouve as respostas de Akerman às cartas da mãe, mas fica evidente que essas respostas se tornaram menos frequentes e mais distantes. Ela opta por esconder aspectos da vida que levava para preservar sua dedicação à criatividade.

A voz da mãe revela o desespero de não saber como a filha está se sustentando, enquanto Akerman, mesmo recebendo apoio financeiro, evita compartilhar detalhes, como mudanças de apartamento. O amor e o desejo pela união familiar, especialmente por parte dos pais, estão em conflito com a filosofia de vida que Akerman seguia.

Ao caminhar pelas vibrantes e, por vezes, tensas ruas de Nova York, Akerman tenta encontrar seu caminho criativo. Para isso, teve de se desapegar do conforto familiar e enfrentar o lado mais humano e sacrificial de sua existência. Se ela não tivesse abraçado o ideal de Hopper, talvez nunca tivesse feito os filmes que a levaram ao sucesso, permitindo-lhe, um dia, voltar para casa — um tema que também explora em Os Encontros de Anna (1978).

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

MARTIN, M. A linguagem cinematográfica. São Paulo: Brasiliense, 2003.

#set #chantalakerman